quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Não fora o mar...

Não fora o mar,


e eu seria feliz na minha rua,


neste primeiro andar da minha casa


a ver, de dia, o sol, de noite a lua,


calada, quieta, sem um golpe de asa.


Não fora o mar,


e seriam contados os meus passos,


tantos para viver, para morrer,


tantos os movimentos dos meus braços,


pequena angústia, pequeno prazer.


Não fora o mar,


e os seus sonhos seriam sem violência


como irisadas bolas de sabão,


efémero cristal, branca aparência,


e o resto — pingos de água em minha mão.


Não fora o mar,


e este cruel desejo de aventura


seria vaga música ao sol pôr


nem sequer brasa viva, queimadura,


pouco mais que o perfume duma flor.


Não fora o mar


e o longo apelo, o canto da sereia,


apenas ilusão, miragem,


breve canção, passo breve na areia,


desejo balbuciante de viagem.


Não fora o mar


e, resignada, em vez de olhar os astros


tudo o que é alto, inacessível, fundo,


cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,


iria de olhos baixos pelo mundo.


Não fora o mar


e o meu canto seria flor e mel,


asa de borboleta, rouxinol,


e não rude halali, garra cruel,


Águia Real que desafia o sol.


Não fora o mar


e este potro selvagem, sem arção,


crinas ao vento, com arreio,


meu altivo, indomável coração,


Não fora o mar


e comeria à mão,


não fora o mar


e aceitaria o freio.


Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"

Este poema não fui eu que o escrevi mas bem poderia ter sido. Sou um bocadinho rebelde, assim, tal como o mar.

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